Dias de Chuva

«O carácter resulta de seguirmos o nosso mais elevado sentido do bem e de confiar em ideias sem ter a certeza que resultam.» Richard Bach

domingo, 22 de novembro de 2009

Voltei. Com muitas saudades do meu blogue. E de muito mais. Mas isso, são outras contas, de outros rosários.

Aqui fica Saramago, como não podia deixar de ser. Polémicas à parte. Pois não vejo polémicas. Vejo, tão-somente, liberdade de expressão. E bem vistas as coisas, e bem lido o livro mantenho a mesma devoção no que era devoto, e o mesmo cepticismo no que era céptico.

«Então caim disse, se bem entendi, o senhor e satã fizeram uma aposta, mas job não pode saber que foi alvo de um acordo de jogadores entre deus e o diabo, Exactamente, exclamaram os anjos em coro, A mim não me parece muito limpo da parte do senhor, disse caim, se o que ouvi é verdade, job, apesar de rico, é um homem bom, honesto, e ainda por cima muito religioso, não cometeu nenhum crime, mas vai ser castigado sem motivo com a perda dos seus bens, talvez, como tantos dizem, o senhor seja justo, mas a mim não me parece, faz-me recordar sempre o que aconteceu com abraão a quem deus, para o pôr à prova, ordenou que matasse o seu filho isaac, em minha opinião, se o senhor não se fia das pessoas que crêem nele, então não vejo por que tenham essas pessoas de fiar-se do senhor, Os desígnios de deus são inescrutáveis, nem nós, anjos, podemos penetrar no seu pensamento, Estou cansado da lengalenga de que os desígnios do senhor são inescrutáveis, respondeu caim, deus deveria ser transparente e límpido como cristal em lugar desta contínua assombração, deste constante medo, enfim, deus não nos ama, Foi ele quem te deu a vida, A vida deram-ma meu pai e minha mãe, juntaram a carne à carne e eu nasci, não consta que deus estivesse presente no acto, Deus está em todo o lado, Sobretudo quando manda matar, uma só criança das que morreram feitas tições em sodoma bastaria para o condenar sem remissão, mas a justiça, para deus, é uma palavra vã, agora vai fazer sofrer job por causa de uma aposta e ninguém lhe pedirá contas, Cuidado, caim, falas de mais, o senhor está a ouvir-te e tarde ou cedo te castigará, O senhor não ouve, o senhor é surdo, por toda a parte se lhe levantam súplicas, são pobres, infelizes, desgraçados, todos a implorar o remédio que o mundo lhes negou, e o senhor vira-lhes as costas, começou por fazer uma aliança com os hebreus e agora fez um pacto com o diabo, para isto não valia a pena haver deus. Os anjos protestaram indignados, ameaçaram deixá-lo ali sem emprego, com o que o debate teológico terminou e as pazes mais ou menos ficaram feitas. Um dos anjos chegou mesmo a dizer, Creio que o senhor apreciaria discutir contigo sobre estes assuntos, Talvez algum dia, respondeu caim.» Saramago, José, in Caim

domingo, 28 de dezembro de 2008

Quando recolhíamos ao quarto, alumiados pelo Gonçalves, passou por nós, bruscamente, no corredor, uma senhora, grande e branca, com um rumor forte de sedas claras, espalhando um aroma de almíscar. Era a inglesa do senhor barão. No meu leito de ferro, desperto pelo barulho das seges, eu pensava nela, rezando Ave-Marias. Nunca roçara corpo tão belo, de um perfume tão penetrante; ela era cheia de graça, o Senhor estava com ela, e passava, bendita entre as mulheres, com um rumor de sedas claras... in A relíquia, de Eça de Queirós.

sábado, 18 de outubro de 2008

Melius est reprehendant nos grammatici quam non intelligant populi.

(Mais vale sermos censurados pelos gramáticos que não entendidos pelo povo)
Santo Agostinho.


É uma afirmação que me «saltou à vista» enquanto me vou dedicando ao estudo. Ando a estudar a História da Língua Portuguesa por terras da Bósnia i Herzegovina. Estou a Gostar.

terça-feira, 15 de julho de 2008

«Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.»

«Imagine-se que nos perdíamos agora a decifrar e explicar a expressão destes olhos, não chegaria a história ao fim, ainda que tudo isto, o que parece pouco e o que parece de mais, da mesma história faça parte, maneira tão boa como outra que o seja de contar. »

«Tinha graça pôr estes escritos em ordem e contar por eles a história, que seria outra maneira de contar, o nosso mal é julgarmos que só as grandes coisas são importantes, ficamos a falar delas e depois quando queremos saber como era, quem estava, que foi que disseram, é uma dificuldade.»
in Levantado do Chão, de José Saramago.

domingo, 29 de junho de 2008

Faz, hoje, 108 anos que morreu Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger Foscolombe de Saint-Exupéry.
Antoine de Saint-Exupery, nasceu no dia 29 de Junho de 1900. Fica para a história dos homens para sempre, sobretudo, pelo seu livro “O Principezinho”, uma obra aparentemente simples, mas, apenas aparentemente, pois é na verdade bastante profunda.
E dela pensei imenso no que aqui poderia deixar. Não é fácil escolher um parágrafo, apesar de ter alguns que adoro. Mas optei pela simplicidade, pela profunda simplicidade de um simples parágrafo.

Mas nós, nós que compreendemos a vida, nós não ligamos aos números! Gostaria de ter começado esta história à moda dos contos de fada. Teria gostado de dizer: "Era uma vez um pequeno príncipe que habitava um planeta pouco maior que ele, e que tinha necessidade de um amigo..." Para aqueles que compreendem a vida, isto pareceria sem dúvida muito mais verdadeiro. in O Principezinho, de Antoine de Saint-Exupéry.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Hoje foi um dia especial. Muito especial mesmo. A minha princesa terminou hoje a primária. Foi bom, ver que cresce. Sobretudo fico feliz porque me dá muito orgulho, quase me babo só de saber que a minha princesa não só é muito boa aluna e, também, muito adulta.
O momento mais marcante da festa foi quando todos fomos presenteados, os meninos com um presente, os pais com uma lição – era o dia dos pais aprenderem qualquer coisa.
Muitas foram as lágrimas que correram as faces, de grandes e pequenos. Sempre foram quatro anos, quatro anos difíceis de classificar, ora breves, ora longos. Quase todos choraram, apenas a minha princesa, e mais uma ou outra, não. Socorria com um «não chores mais», ou «olha já chega. Olha eu não estou a chorar». Será que chorava por dentro mais ainda, ou será que não – e isso será bom, será mau?
Bem foi o dia da minha Princesa. Da minha Fifi.

Agora deixo a lição que hoje aprendi. A lição da professora Elisabete.

A criança que vive com afeição
aprende a amar

A criança que vive com estímulo
aprende a confiar

A criança que vive com a verdade
aprende a ser justa

A criança que vive com o elogio
aprende a dar valor

A criança que vive com generosidade
aprende a repartir

A criança que vive com o saber
aprende a conhecer

A criança que vive com paciência
aprende a tolerância

A criança que vive com felicidade
conhecerá o amor e a beleza
(Ronald Russel)
2007/2008
A Professora
(Elisabete Cunha)

domingo, 8 de junho de 2008

O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. As quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo.
Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom caráter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável.
Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que acionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira". Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira.
Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz noturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas.
Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranqüilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza".
Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.
José Saramago, Discurso na Academia Sueca (ao receber o Prémio Nobel de Literatura)

domingo, 11 de maio de 2008

… com 39 anos. Fisicamente, parece mais novo. Conserva negra a cabeleira farta, com uma risca à esquerda, e aparada curta. Emagreceu; e o rosto ossudo, muito branco, chupado, seco, apoia-se num pescoço magro.com o seu colarinho de goma, alto e rijo, e todo vestido de escuro como de luto, tem o ar ascético, escanhoado e nítido, de um clérigo anglicano ou de um sábio alheio ao mundo. É compassado no andar, e de gestos lentos e calmos; fala sem esforço, naturalmente, mas escolhe com rigor as palavras, e apenas diz o que pretende; e suscita a impressão de que não pode rir-se. De olhos sempre em movimento, esquadrinha tudo e todos. E não se perturba, nem se surpreende por coisa alguma. Ainda que bem apessoado, é uma figura frágil, mas nitidamente recortada; e ressuma personalidade, decisão, vida interior e raça. in Salazar - os tempos áureos 1928-1936, de Franco Nogueira.

terça-feira, 8 de abril de 2008


"Quando eu tinha 15 anos sabia desenhar como Rafael, mas precisei uma vida inteira para aprender a desenhar como as crianças" Pablo Ruiz Picasso.

Nasceu no Outono, faleceu na primavera. Faz hoje 35 anos que deixou de estar presente, sem nunca ser um ausente. Ele está por aí.
A Imagem é o seu auto-retrato, desenhado em 1907.
Presente.
Aprender sem pensar é tempo perdido. Confúcio

Nada é Complicado se nos Prepararmos Previamente.

Se, antes de começarmos a falar, determinarmos e escolhermos, previamente, as palavras, a nossa conversa não será vacilante nem ambígua.

Se em todos os nossos negócios e empresas determinarmos e planearmos, previamente, as etapas da nossa actuação, obteremos o êxito.

Se determinarmos com bastante antecedência a nossa norma de conduta na vida, em nenhum momento seremos assaltados pela inquietação.

Se sabemos, previamente, quais são os nossos deveres, será fácil darmos-lhes cumprimento.
Confúcio in a "Sabedoria de Confúcio".

sábado, 22 de março de 2008

A UM POETA
Surge et ambula

Tu, que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno,

Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera um só aceno...

Escuta! é a grande voz das multidões
São teus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas de guerra... e são vozes a rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

Antero de Quental

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Soberbo. Sem mais, soberbo apenas. Saramago é isto, soberbo com ésse grande – Soberbo. Apesar que afinal os seus romances sempre desiludem. A desilusão é que acabam, terminam, e assim obrigam-me a este protesto Que os romances de Saramago não terminem, acrescento ainda Que este ensaio sobre a lucidez continue, como tão bem continuou o ensaio sobre a cegueira. Agora, já que a isso a curiosidade se me aguçou, não a do gato, a do leitor apenas, folheei e vi que a palavra fim não está lá. Assim espero, expectante, convicto que essa gralha é propositada.
Vocês não me vêm mas eu estou a sorrir. Imaginem.

Antes de prosseguirmos este relato, convirá explicar que o emprego da palavra brancoso poucas linhas atrás não foi ocasional ou fortuito nem resultou de um erro de digitação no teclado do computador, e muito menos se tratou de um neologismo que o narrador teria ido a correr inventar para suprir uma falta. O termo existe, existe mesmo, pode ser encontrado em qualquer dicionário, o problema, se problema é, reside no facto de as pessoas estarem convencidas de que conhecem o significado da palavra branco e dos seus derivados, e portanto não perdem tempo a certificar-se à fonte, ou então padecem da síndroma de intelecto preguiçoso e por aí se ficam, não vão mais além, à bela descoberta. Não se sabe quem terá sido na cidade o curioso investigador ou casual achador, o certo é que a palavra se espalhou rapidamente e logo com o sentido pejorativo que a simples leitura já parece provocar. Embora não nos tivéssemos referido anteriormente ao facto, deplorável em todos os seus aspectos, os próprios meios de comunicação social, em particular a televisão estatal, já estão a empregar a palavra como se tratasse de uma obscenidade das piores. in Ensaio sobre a Lucidez, de José Saramago.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Voltei. Já foi a uns 25 dias, mas só agora se tornou oportuno, ou melhor, só agora tive a oportunidade de aqui voltar. O meu blog já me dava saudades, mas primeiro a família, os amigos, o estudo - e os exames da faculdade - e agora sim as paixões. Paixões, livros sobretudo - outros há, segredos -, e por estes ficamos.
Timor já lá vai. Há momentos que recordo, outros nem por isso, só a muito esforço, outros há a esquecer, outros talvez nunca. Já passou, viro a página, agora aqui. Agora os livros.
Comecei a leitura por algo que nunca desilude, Jamais, no francês, é Nobel, merecidíssimo, é luso, ou por cá nasceu, agora será mais do mundo, e que o mundo nunca o perca e esqueça. O nome nem digo, claro, mas deixo aqui um parágrafo, dele, em que tropecei e não esqueço:
O inconveniente destas digressões narrativas, ocupados como estivemos com intrometidos excursos, é acabar por descobrir, porém demasiado tarde, que, mal nos tínhamos precatado, os acontecimentos não esperam por nós, que já vão adiante, e que, em lugar de havermos anunciado, como é elementar obrigação de qualquer contador de histórias que saiba do seu ofício, o que irá suceder, não nos resta agora outro remédio que confessar, contritos, que já sucedeu. in Ensaio Sobre A Lucidez, de Saramago.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

“Cumpra a lei.”
A directora suspirou e abanou a cabeça.“Eu sei o que diz a lei. O problema é que neste país aprovam-se leis muito bonitas, mas não se dão condições para que elas sejam aplicadas. De que me serve ter uma lei que me obriga a ter um professor de ensino especial se não tenho dinheiro para o contratar? Pelo que me diz respeito, os senhores deputados até podem decretar… uh… sei lá, que se viva eternamente. Mas não é porque sai uma lei a dizer que se tem de viver eternamente que as pessoas vão cumprir essa lei. Seria uma lei irrealista. O mesmo se passa com este caso. Criou-se uma lei muito justa, muito linda, muito humana, mas, quando chega a hora de avançar com os carcanhóis não há nada para ninguém. Ou seja, a lei existe para se dizer que existe, para que alguém se gabe de ater aprovado. Mais nada.”
in O Codex 632, de José Rodrigues dos Santos.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade

Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.

Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.

Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te.
A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente

Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis, 1-7-1916

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram;

in Os Lusíadas, de Camões

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

AS FONTES


Um dia quebrarei todas as pontes

Que ligam o meu ser, vivo e total

À agitação do mundo irreal

E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora

A plenitude, o límpido esplendor

Que me foi prometido em cada hora

E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer

Irei beber a voz dessa promessa

Que às vezes como um voo me atravessa

E nela cumprirei todo o meu ser.


Mafalda Arnauth, (Sophia de Melo Breyner / Luís Oliveira)

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O autor é um rapaz de 24 anos, calado, metido consi­go, que ganha a vida como praticante de escrita nos servi­ços administrativos dos Hospitais Civis de Lisboa, depois de ter estado a trabalhar durante mais de um ano como aprendiz de serralharia mecânica nas oficinas dos ditos Hospitais. Tem poucos livros em casa porque o ordenado é pequeno, mas leu na biblioteca municipal das Galveias, tempos atrás, tudo quanto a sua compreensão logrou alcan­çar. Ainda estava solteiro quando um caridoso colega da repartição, segundo-oficial, de apelido Figueiredo, lhe em­prestou trezentos escudos para comprar os livrinhos da colecção «Cadernos» da Editorial Inquérito. A sua primeira estante foi uma prateleira interior do guarda-louça fami­liar. Neste ano de 1947 em que estamos nascer-lhe-á uma filha, a quem medieval mente dará o nome de Violante, e publicará o romance que tem andado a escrever, esse a que chamou A Viúva mas que vai aparecer à luz do dia com um título a que nunca se há-de acostumar. Como no tempo em que viveu na aldeia já havia plantado umas quantas árvo­res, pouco mais lhe resta para fazer na vida. Supõe-se que escreveu este livro porque numa antiga conversa entre ami­gos, daquelas que têm os adolescentes, falando uns com os outros do que gostariam de ser quando fossem grandes, disse que queria ser escritor. Em mais novo o seu sonho era ser maquinista de caminho-de-ferro, e se não fosse por causa da miopia e da diminuta fortaleza física, imaginando que não perderia a coragem entretanto, teria ido para aviador militar. Acabou em manga-de-alpaca do último grau da escala hierárquica, e tão cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à pequena mesa em que trabalha, ao lado da prensa das cópias. Não sabe dizer como lhe veio depois a ideia de escrever a história de uma viú­va ribatejana, ele que de Ribatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se existe o menos que nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar. Também não sabe explicar por que foi que escolheu a Parceria An­tónio Maria Pereira quando, com notável atrevimento, sem padrinhos, sem empenhos, sem recomendações, se decidiu a procurar um editor para o seu livro. E ficará para sem­pre como um dos mistérios impenetráveis da sua vida haver-lhe escrito Manuel Rodrigues, da Editorial Minerva, dizendo ter recebido A Viúva na sua casa por intermédio da Livraria Pax, de Braga, e que passasse ele pela Rua Luz Soriano, que era onde estava a editora. Em momento ne­nhum ousou o autor perguntar a Manuel Rodrigues por que aparecia a tal Pax metida no caso, quando a verdade é que só tinha enviado o livro à António Maria Pereira. Achou que não era prudente pedir explicações à sorte e dispôs-se a ouvir as condições que o editor da Minerva tivesse para lhe propor. Em primeiro lugar, não haveria pagamento de direitos. Em segundo lugar, o título do livro, sem atractivo comercial, deveria ser substituído. Tão pouco habituado estava o nosso autor a andar com tostões de sobra no bolso e tão agradecido a Manuel Rodrigues pela aventura arris­cada em que se ia meter, que não discutiu os aspectos ma­teriais de um contrato que nunca veio a passar de simples acordo verbal. Quanto ao rejeitado título, ainda conseguiu murmurar que iria tentar outro, mas o editor adiantou-se, que já o tinha, que não pensasse mais. O romance chamar­-se-ia Terra do Pecado. Aturdido pela vitória de ir ser pu­blicado e pela derrota de ver trocado o nome a esse outro filho, o autor baixou a cabeça e foi dali anunciar à família e aos amigos que as portas da literatura portuguesa se tinham aberto para ele. Não podia adivinhar que o livro terminaria a pouco lustrosa vida nas padiolas. Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito a oferecer ao autor de A Viúva.
in Aviso de Apresentação do livro Terra do Pecado de Saramago.

domingo, 28 de outubro de 2007

Todos deveríamos em algum momento da nossa existência questionar as nossas vidas e analisar aquilo porque lutamos. Quem não o consegue fazer será escravo do sistema, viverá para trabalhar, cumprir obrigações profissionais e limitar-se-á a sobreviver. Por fim, sucumbirá no vazio. Augusto Cury

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Quase todos nós percorremos um longo caminho. Fomos de um mundo para outro, que era praticamente igual ao primeiro, esquecendo logo de onde viéramos, não nos preocupando para onde íamos, vivendo o momento presente. Tem alguma ideia de por quantas vidas tivemos de passar até chegarmos a ter a primeira intuição de que há na vida algo mais do que comer, ou lutar, ou ter uma posição importante dentro de um bando? Mil vidas, Fernão, dez mil! E depois mais cem vidas até começarmos a aprender que há uma coisa chamada perfeição, e ainda outras cem para nos convencermos de que o nosso objectivo na vida é encontrar essa perfeição e levá-la ao extremo. A mesma regra mantém-se para os que aqui estão agora, é claro: escolheremos o nosso próximo mundo através do que aprendermos neste. Não aprender nada significa que o próximo mundo será igual a este, com as mesmas limitações e pesos de chumbo a vencer. in Fernão Capêlo Gaivota de Richard Bach

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Como os leitores já viram, a oração, a celebração dos ofícios religiosos, a esmola, a consolação dos aflitos, a cultura de um canteiro, a fraternidade, a frugalidade, a hospitalidade, o desapego, a confiança, o estudo, o trabalho, ocupavam-lhe todos os momentos da existência. «Ocupavam» é o termo próprio, porque, efectivamente, cada dia de existência do bispo estava cheio de bons pensamentos, de boas palavras e de boas obras.
Deixava, porém, de ser completo, se a chuva ou o frio o inibiam de ir passear ao jardim uma ou duas horas antes de se deitar, depois de se terem acomodado as mulheres. Parecia que era para ele uma espécie de rito preparar-se para dormir pela meditação em presença dos grandes espectáculos da noite. Às vezes, a hora bastante adiantada da noite, ouviam ainda as duas mulheres, se acaso estavam acordadas, o rumor dos seus vagarosos passos no jardim. Ali permanecia a sós consigo, em plácido recolhimento e adoração, comparando a serenidade de seu coração com a do éter, impressionado no meio das trevas pelos esplendores visíveis das constelações e pelos visíveis esplendores de Deus, abrindo a alma aos pensamentos que descem do Desconhecido.
Nessas ocasiões, oferecendo o seu coração à hora en que as flores nocturnas oferecem o seu perfume, aceso como uma lâmpada no meio da noite estrelada, enlevado no meio do cintilar universal da Criação, nem ele mesmo saberia dizer o que se passava no seu espírito; sentia derramar-se dele qualquer coisa e descer sobre ele o que quer que fosse.
Misteriosas permutações entre os abismos da alma e os abismos do Universo!
Meditava sobre a grandeza e presença de Deus; sobre a eternidade futura, mistério extraordinário; sobre a eternidade passada, mistério mais extraordinário ainda; sobre todos os infinitos que se abismavam a seus olhos em todas as direcções; e, sem tentar compreender o incompreensível, limitava-se a fitá-lo. Não analisava Deus; deslumbrava-se. Reflectia sobre esses magníficos encontros de átomos que produzem o aspecto da matéria, revelam as forças provando as, criam as individualidades na unidade, as proporções na extensão, o inumerável no infinito; que, por meio da luz, produzem a beleza, e de cujo acabamento e constante renovação resulta a vida e a morte.
Sentava-se num banco de pau encostado a uma velha latada, e daí contemplava os astros por entre as enfezadas e raquíticas frondes das suas fruteiras. Aquele quarto de jeira tão mesquinhamente plantado, tão atulhado de casebres e cobertos, era-lhe caro e suficiente. Que mais necessitava o pobre velho, que dividia os ócios da sua existência, que tão curtos eram, entre a jardinagem de dia e a contemplação de noite? Aquele estreito recinto, com o céu por tecto, não lhe era bastante para poder adorar a Deus alternativamente nas Suas obras mais amenas e nas Suas obras mais sublimes?
Não era isto mais que suficiente?
Um pequeno jardim para passear e a vastidão para meditar.
Que mais podia ele querer?A seus pés, tinha o que cultivar-se e colher-se; por cima, o que se pode estudar e meditar, algumas flores na terra e todas as estrelas do céu.
in Os Miseráveis de Vitor Hugo

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

A Sociedade é a Imagem do Homem
O aperfeiçoamento da Humanidade depende do aperfeiçoamento de cada um dos indivíduos que a formam. Enquanto as partes não forem boas, o todo não pode ser bom. Os homens, na sua maioria, são ainda maus e é, por isso, que a sociedade enferma de tantos males. Não foi a sociedade que fez os homens; foram os homens que fizeram a sociedade.
Quando os homens se tornarem bons, a sociedade tornar-se-á boa, sejam quais forem as bases políticas e económicas em que ela assente. Dizia um bispo francês que preferia um bom muçulmano a um mau cristão. Assim deve ser. As instituições aparecem com as virtudes ou com os defeitos dos homens que as representam. Teixeira de Pascoaes, in "A Saudade e o Saudosismo"

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Assim falava aquele homem no recôndito da sua consciência, inclinado por sobre o que poderia chamar-se o seu próprio abismo. Ergueu-se da cadeira e pôs-se a passear no quarto.
- Vamos – disse ele –, não tornemos a pensar mais nisto! Já tomei a resolução que havia de tomar! - Não sentiu, porém, alegria nenhuma.
Pelo contrário.
Pretender obstar a que o pensamento volte a ocupar-se de uma ideia, seria o mesmo que querer impedir o mar de voltar a humedecer a areia da praia. Para o marinheiro, chama-se a isto a maré; para o criminoso, chama-se remorso. Agita Deus a alma, como agita o oceano.
Ao cabo de poucos instantes, tornou a travar esse sombrio diálogo, em que era ele que falava e quem escutava, dizendo o que desejaria calar, escutando o que desejaria não ouvir, cedendo a essa potência misteriosa que lhe dizia: pensa! Como há dois mil anos dizia a outro condenado: caminha!
Antes de irmos mais longe, e para sermos completamente compreendidos, insistamos numa observação necessária.
E certo que o homem fala a si mesmo; não há um único ser racional que o não tenha experimentado. Pode-se até dizer que o mistério do Verbo nunca é mais magnifico do que quando, no interior do homem, vai do pensamento à consciência, e volta da consciência ao pensamento. É somente neste sentido que devem ser entendidas as palavras, frequentemente empregadas neste capítulo: disse, exclamou. Diz, fala, exclama cada um consigo mesmo, sem que seja quebrado o silêncio exterior. Há um grande tumulto; tudo fala em nós, excepto a boca. As realidades da alma, por não serem visíveis e palpáveis, nem por isso deixam de ser também realidades.Perguntou, pois, a si mesmo aquele homem, onde estava. Interrogou-se sobre aquela «resolução tomada». Confessou a si mesmo que tudo o que ele acabava de dispor no seu espírito era monstruoso, que «deixar correr as coisas, deixar obrar o bom Deus» era nem mais nem menos do que uma coisa horrível. Deixar realizar aquele desacerto do destino e dos homens, não o impedir, antes favorecê-lo com o seu silêncio, nada fazer enfim, era fazer tudo! Era o último grau da indignidade hipócrita! Era um crime vilão, cobarde, dissimulado, abjecto e torpemente disforme! Aquele homem infeliz acabava de sentir pela primeira vez, havia oito anos, o sabor amargo de um mau pensamento e de uma má acção.
in Os Miseráveis de Vitor Hugo.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Fracassei muito, errei muito, conheci de perto as minhas limitações. Hoje tenho tido mais sucesso do que o que mereço. O dia em que achar que mereço tudo o que tenho deixarei de sonhar e criar. Serei estéril.


Aprendi que ninguém é digno do pódio se não usar as derrotas para o alcançar. Ninguém terá prazer no estrelato se desprezar a beleza das coisas simples no anonimato, pois nelas se escondem os segredos da felicidade.
in Nunca abandone os seus sonhos de Augusto Cury.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Precisamos de assistir à transgressão dos nossos limites e à vida que se processa livremente nas paragens onde nunca nos aventuramos. in Gerónimo - Por ele mesmo.

Na guerra de extermínio movida pela Democracia Americana contra os primitivos habitantes da pradaria, durante o século XIX, ninguém levou mais longe a resistência do que os apaches chiracahuas. O último chefe guerreiro a render-se à força da tropa branca foi Gerónimo, o exemplo acabado duma cultura cujos grandes valores eram a ligação à terra, o equilíbrio entre o homem e o meio, o culto da natureza, o desprendimento da propriedade. No fim da vida, Gerónimo ditou esta singular autobiografia, importante documento literário e histórico, que testemunha um dos mais violentos choques culturais entre Progresso e Natureza, Estado e Liberdade, no decorrer dos últimos séculos."
O livro de que vos falo chama-se "Gerónimo, por ele próprio", da editora Antígona. Foi uma mistura de curiosidade e ódio de estimação pelos supostos senhores da liberdade que me levaram a lê-lo, mas notei que este livro pode ser muito mais que isso. Recomendo-o vivamente a quem se interessar por este estilo de leitura.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação. Em «César e Cleópatra» de Shaw, quando se fala da biblioteca de Alexandria, diz-se que ela é a memória da humanidade. O livro é isso e também algo mais: a imaginação. Pois o que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado? Tal é a função que o livro realiza.
(...) Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. Por isso convém manter o culto do livro. O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.
Jorge Luís Borges, in 'Ensaio: O Livro'

domingo, 16 de setembro de 2007

Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de pratica. Porque da jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque e mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calcas e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e a mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-socio-bio-ecologica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, e na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado e que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "ta tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananoides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que e como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor e uma coisa, a vida e outra. O amor não e para ser uma ajudinha. Não e para ser o alivio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "da lá um jeitinho sentimental".
Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja.
Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor e amor. E essa beleza. E esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não e para nos ajudar, não e para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. E uma questão de azar. O nosso amor não e para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor e uma coisa, a vida e outra. A vida as vezes mata o amor. A "vidinha" e uma convivência assassina. O amor puro não e um meio, não e um fim, não e um principio, não e um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não da para perceber. O amor e um estado de quem se sente. O amor e a nossa alma. E a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor e uma verdade. E por isso que a ilusão e necessária. A ilusão e bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor e uma coisa, a vida e outra. A realidade pode matar, o amor e mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não e ela que nos acompanha – e o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não e para perceber. E sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida e uma coisa, o amor e outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E vale-la também.
Miguel Esteves Cardoso in Expresso

sábado, 15 de setembro de 2007

Saqueando todos estes livros, pude descrever a outros leitores tempos em que não vivi e lugares que nunca vi. Mas tal é também a função da literatura, ou não será?


Tomei grandes liberdades com a história, convencido de que, como dizia Manzoni, «o escritor deve aproveitar-se da história, sem pretender fazer-lhe concorrência».
in A Ultima Fronteira, de Bruno Arpaia.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

... um dos mal-entendidos que dominam a noção de biblioteca é o facto de se pensar que se vai à biblioteca pedir um livro cujo título se conhece. Na verdade acontece muitas vezes ir-se a biblioteca porque se quer um livro cujo título se conhece, mas a principal função da biblioteca, pelo menos a função da biblioteca da minha casa ou da de qualquer amigo que possamos ir visitar, é de descobrir livros de cuja existência não se suspeitava e que, todavia, se revelam extremamente importantes para nós.
…a função ideal de uma biblioteca é de ser um pouco como a loja de um alfarrabista, algo onde se podem fazer verdadeiros achados, e esta função só pode ser permitida por meio do livre acesso aos corredores das estantes.
…se a biblioteca é, como pretende Borges, um modelo do Universo, tentemos transformá-la num universo à medida do homem e, volto a recordar, à medida do homem quer também dizer alegre, com a possibilidade de se tomar um café, com a possibilidade de dois estudantes numa tarde se sentarem numa maple e, não digo de se entregarem a um amplexo indecente, mas de consumarem parte do seu flirt na biblioteca, enquanto retiram ou voltam a pôr nas estantes alguns livros de interesse cientifico, isto é, uma biblioteca onde apeteça ir, e que se vá transformando gradualmente numa grande máquina de tempos livres…
in A Biblioteca de Umberto Eco.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Diz-se que quem cala, consente. A gadanha havia calado, portanto tinha consentido. Envolvida no seu lençol, com o capuz atirado para trás a fim de desafogar a visão, a morte sentou-se a trabalhar. Escreveu, escreveu, passaram as horas e ela a escrever, e eram as cartas, e eram os sobrescritos, e era dobrá-las, e era fechá-los, perguntar-se-á como o conseguia se não tem língua nem de onde lhe venha a saliva, isso, meus caros senhores, foi nos felizes tempos do artesanato, quando ainda vivíamos nas cavernas de uma modernidade que mal começava a despontar, agora os sobrescritos são dos chamados autocolantes, retira-se-lhes a tirinha de papel, e já está, dos múltiplos empregos que a língua tinha, pode dizer-se que este passou à história. A morte só não chegou ao fim com o pulso aberto depois de tão grande esforço porque, em verdade, aberto já ela o tem desde sempre. São modos de falar que se nos pegam à linguagem, continuamos a usá-los mesmo depois de se terem desviado há muito do sentido original, e não nos damos conta de que, por exemplo, no caso desta nossa morte que por aqui tem andado em figura de esqueleto, o pulso já lhe veio aberto de nascença, basta ver a radiografia. in As Intermitências da Morte de José Saramago.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

É meu e vosso este fado
Destino que nos amarra
Por mais que seja negado
Às cordas de uma guitarra
Sempre que se ouve o gemido
De uma guitarra a cantar
Fica-se logo perdido
Com vontade de chorar
Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que recebi
E pareceria ternura
Se eu me deixasse embalar
Era maior a amargura
Menos triste o meu cantar
Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que recebi


Ó Gente Da Minha Terra, Mariza