«O carácter resulta de seguirmos o nosso mais elevado sentido do bem e de confiar em ideias sem ter a certeza que resultam.» Richard Bach

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Diz-se que quem cala, consente. A gadanha havia calado, portanto tinha consentido. Envolvida no seu lençol, com o capuz atirado para trás a fim de desafogar a visão, a morte sentou-se a trabalhar. Escreveu, escreveu, passaram as horas e ela a escrever, e eram as cartas, e eram os sobrescritos, e era dobrá-las, e era fechá-los, perguntar-se-á como o conseguia se não tem língua nem de onde lhe venha a saliva, isso, meus caros senhores, foi nos felizes tempos do artesanato, quando ainda vivíamos nas cavernas de uma modernidade que mal começava a despontar, agora os sobrescritos são dos chamados autocolantes, retira-se-lhes a tirinha de papel, e já está, dos múltiplos empregos que a língua tinha, pode dizer-se que este passou à história. A morte só não chegou ao fim com o pulso aberto depois de tão grande esforço porque, em verdade, aberto já ela o tem desde sempre. São modos de falar que se nos pegam à linguagem, continuamos a usá-los mesmo depois de se terem desviado há muito do sentido original, e não nos damos conta de que, por exemplo, no caso desta nossa morte que por aqui tem andado em figura de esqueleto, o pulso já lhe veio aberto de nascença, basta ver a radiografia. in As Intermitências da Morte de José Saramago.

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