«O carácter resulta de seguirmos o nosso mais elevado sentido do bem e de confiar em ideias sem ter a certeza que resultam.» Richard Bach

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Como os leitores já viram, a oração, a celebração dos ofícios religiosos, a esmola, a consolação dos aflitos, a cultura de um canteiro, a fraternidade, a frugalidade, a hospitalidade, o desapego, a confiança, o estudo, o trabalho, ocupavam-lhe todos os momentos da existência. «Ocupavam» é o termo próprio, porque, efectivamente, cada dia de existência do bispo estava cheio de bons pensamentos, de boas palavras e de boas obras.
Deixava, porém, de ser completo, se a chuva ou o frio o inibiam de ir passear ao jardim uma ou duas horas antes de se deitar, depois de se terem acomodado as mulheres. Parecia que era para ele uma espécie de rito preparar-se para dormir pela meditação em presença dos grandes espectáculos da noite. Às vezes, a hora bastante adiantada da noite, ouviam ainda as duas mulheres, se acaso estavam acordadas, o rumor dos seus vagarosos passos no jardim. Ali permanecia a sós consigo, em plácido recolhimento e adoração, comparando a serenidade de seu coração com a do éter, impressionado no meio das trevas pelos esplendores visíveis das constelações e pelos visíveis esplendores de Deus, abrindo a alma aos pensamentos que descem do Desconhecido.
Nessas ocasiões, oferecendo o seu coração à hora en que as flores nocturnas oferecem o seu perfume, aceso como uma lâmpada no meio da noite estrelada, enlevado no meio do cintilar universal da Criação, nem ele mesmo saberia dizer o que se passava no seu espírito; sentia derramar-se dele qualquer coisa e descer sobre ele o que quer que fosse.
Misteriosas permutações entre os abismos da alma e os abismos do Universo!
Meditava sobre a grandeza e presença de Deus; sobre a eternidade futura, mistério extraordinário; sobre a eternidade passada, mistério mais extraordinário ainda; sobre todos os infinitos que se abismavam a seus olhos em todas as direcções; e, sem tentar compreender o incompreensível, limitava-se a fitá-lo. Não analisava Deus; deslumbrava-se. Reflectia sobre esses magníficos encontros de átomos que produzem o aspecto da matéria, revelam as forças provando as, criam as individualidades na unidade, as proporções na extensão, o inumerável no infinito; que, por meio da luz, produzem a beleza, e de cujo acabamento e constante renovação resulta a vida e a morte.
Sentava-se num banco de pau encostado a uma velha latada, e daí contemplava os astros por entre as enfezadas e raquíticas frondes das suas fruteiras. Aquele quarto de jeira tão mesquinhamente plantado, tão atulhado de casebres e cobertos, era-lhe caro e suficiente. Que mais necessitava o pobre velho, que dividia os ócios da sua existência, que tão curtos eram, entre a jardinagem de dia e a contemplação de noite? Aquele estreito recinto, com o céu por tecto, não lhe era bastante para poder adorar a Deus alternativamente nas Suas obras mais amenas e nas Suas obras mais sublimes?
Não era isto mais que suficiente?
Um pequeno jardim para passear e a vastidão para meditar.
Que mais podia ele querer?A seus pés, tinha o que cultivar-se e colher-se; por cima, o que se pode estudar e meditar, algumas flores na terra e todas as estrelas do céu.
in Os Miseráveis de Vitor Hugo

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

A Sociedade é a Imagem do Homem
O aperfeiçoamento da Humanidade depende do aperfeiçoamento de cada um dos indivíduos que a formam. Enquanto as partes não forem boas, o todo não pode ser bom. Os homens, na sua maioria, são ainda maus e é, por isso, que a sociedade enferma de tantos males. Não foi a sociedade que fez os homens; foram os homens que fizeram a sociedade.
Quando os homens se tornarem bons, a sociedade tornar-se-á boa, sejam quais forem as bases políticas e económicas em que ela assente. Dizia um bispo francês que preferia um bom muçulmano a um mau cristão. Assim deve ser. As instituições aparecem com as virtudes ou com os defeitos dos homens que as representam. Teixeira de Pascoaes, in "A Saudade e o Saudosismo"

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Assim falava aquele homem no recôndito da sua consciência, inclinado por sobre o que poderia chamar-se o seu próprio abismo. Ergueu-se da cadeira e pôs-se a passear no quarto.
- Vamos – disse ele –, não tornemos a pensar mais nisto! Já tomei a resolução que havia de tomar! - Não sentiu, porém, alegria nenhuma.
Pelo contrário.
Pretender obstar a que o pensamento volte a ocupar-se de uma ideia, seria o mesmo que querer impedir o mar de voltar a humedecer a areia da praia. Para o marinheiro, chama-se a isto a maré; para o criminoso, chama-se remorso. Agita Deus a alma, como agita o oceano.
Ao cabo de poucos instantes, tornou a travar esse sombrio diálogo, em que era ele que falava e quem escutava, dizendo o que desejaria calar, escutando o que desejaria não ouvir, cedendo a essa potência misteriosa que lhe dizia: pensa! Como há dois mil anos dizia a outro condenado: caminha!
Antes de irmos mais longe, e para sermos completamente compreendidos, insistamos numa observação necessária.
E certo que o homem fala a si mesmo; não há um único ser racional que o não tenha experimentado. Pode-se até dizer que o mistério do Verbo nunca é mais magnifico do que quando, no interior do homem, vai do pensamento à consciência, e volta da consciência ao pensamento. É somente neste sentido que devem ser entendidas as palavras, frequentemente empregadas neste capítulo: disse, exclamou. Diz, fala, exclama cada um consigo mesmo, sem que seja quebrado o silêncio exterior. Há um grande tumulto; tudo fala em nós, excepto a boca. As realidades da alma, por não serem visíveis e palpáveis, nem por isso deixam de ser também realidades.Perguntou, pois, a si mesmo aquele homem, onde estava. Interrogou-se sobre aquela «resolução tomada». Confessou a si mesmo que tudo o que ele acabava de dispor no seu espírito era monstruoso, que «deixar correr as coisas, deixar obrar o bom Deus» era nem mais nem menos do que uma coisa horrível. Deixar realizar aquele desacerto do destino e dos homens, não o impedir, antes favorecê-lo com o seu silêncio, nada fazer enfim, era fazer tudo! Era o último grau da indignidade hipócrita! Era um crime vilão, cobarde, dissimulado, abjecto e torpemente disforme! Aquele homem infeliz acabava de sentir pela primeira vez, havia oito anos, o sabor amargo de um mau pensamento e de uma má acção.
in Os Miseráveis de Vitor Hugo.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Fracassei muito, errei muito, conheci de perto as minhas limitações. Hoje tenho tido mais sucesso do que o que mereço. O dia em que achar que mereço tudo o que tenho deixarei de sonhar e criar. Serei estéril.


Aprendi que ninguém é digno do pódio se não usar as derrotas para o alcançar. Ninguém terá prazer no estrelato se desprezar a beleza das coisas simples no anonimato, pois nelas se escondem os segredos da felicidade.
in Nunca abandone os seus sonhos de Augusto Cury.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Precisamos de assistir à transgressão dos nossos limites e à vida que se processa livremente nas paragens onde nunca nos aventuramos. in Gerónimo - Por ele mesmo.

Na guerra de extermínio movida pela Democracia Americana contra os primitivos habitantes da pradaria, durante o século XIX, ninguém levou mais longe a resistência do que os apaches chiracahuas. O último chefe guerreiro a render-se à força da tropa branca foi Gerónimo, o exemplo acabado duma cultura cujos grandes valores eram a ligação à terra, o equilíbrio entre o homem e o meio, o culto da natureza, o desprendimento da propriedade. No fim da vida, Gerónimo ditou esta singular autobiografia, importante documento literário e histórico, que testemunha um dos mais violentos choques culturais entre Progresso e Natureza, Estado e Liberdade, no decorrer dos últimos séculos."
O livro de que vos falo chama-se "Gerónimo, por ele próprio", da editora Antígona. Foi uma mistura de curiosidade e ódio de estimação pelos supostos senhores da liberdade que me levaram a lê-lo, mas notei que este livro pode ser muito mais que isso. Recomendo-o vivamente a quem se interessar por este estilo de leitura.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação. Em «César e Cleópatra» de Shaw, quando se fala da biblioteca de Alexandria, diz-se que ela é a memória da humanidade. O livro é isso e também algo mais: a imaginação. Pois o que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado? Tal é a função que o livro realiza.
(...) Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. Por isso convém manter o culto do livro. O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.
Jorge Luís Borges, in 'Ensaio: O Livro'

domingo, 16 de setembro de 2007

Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de pratica. Porque da jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque e mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calcas e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e a mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-socio-bio-ecologica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, e na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado e que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "ta tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananoides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que e como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor e uma coisa, a vida e outra. O amor não e para ser uma ajudinha. Não e para ser o alivio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "da lá um jeitinho sentimental".
Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja.
Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor e amor. E essa beleza. E esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não e para nos ajudar, não e para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. E uma questão de azar. O nosso amor não e para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor e uma coisa, a vida e outra. A vida as vezes mata o amor. A "vidinha" e uma convivência assassina. O amor puro não e um meio, não e um fim, não e um principio, não e um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não da para perceber. O amor e um estado de quem se sente. O amor e a nossa alma. E a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor e uma verdade. E por isso que a ilusão e necessária. A ilusão e bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor e uma coisa, a vida e outra. A realidade pode matar, o amor e mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não e ela que nos acompanha – e o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não e para perceber. E sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida e uma coisa, o amor e outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E vale-la também.
Miguel Esteves Cardoso in Expresso

sábado, 15 de setembro de 2007

Saqueando todos estes livros, pude descrever a outros leitores tempos em que não vivi e lugares que nunca vi. Mas tal é também a função da literatura, ou não será?


Tomei grandes liberdades com a história, convencido de que, como dizia Manzoni, «o escritor deve aproveitar-se da história, sem pretender fazer-lhe concorrência».
in A Ultima Fronteira, de Bruno Arpaia.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

... um dos mal-entendidos que dominam a noção de biblioteca é o facto de se pensar que se vai à biblioteca pedir um livro cujo título se conhece. Na verdade acontece muitas vezes ir-se a biblioteca porque se quer um livro cujo título se conhece, mas a principal função da biblioteca, pelo menos a função da biblioteca da minha casa ou da de qualquer amigo que possamos ir visitar, é de descobrir livros de cuja existência não se suspeitava e que, todavia, se revelam extremamente importantes para nós.
…a função ideal de uma biblioteca é de ser um pouco como a loja de um alfarrabista, algo onde se podem fazer verdadeiros achados, e esta função só pode ser permitida por meio do livre acesso aos corredores das estantes.
…se a biblioteca é, como pretende Borges, um modelo do Universo, tentemos transformá-la num universo à medida do homem e, volto a recordar, à medida do homem quer também dizer alegre, com a possibilidade de se tomar um café, com a possibilidade de dois estudantes numa tarde se sentarem numa maple e, não digo de se entregarem a um amplexo indecente, mas de consumarem parte do seu flirt na biblioteca, enquanto retiram ou voltam a pôr nas estantes alguns livros de interesse cientifico, isto é, uma biblioteca onde apeteça ir, e que se vá transformando gradualmente numa grande máquina de tempos livres…
in A Biblioteca de Umberto Eco.