«O carácter resulta de seguirmos o nosso mais elevado sentido do bem e de confiar em ideias sem ter a certeza que resultam.» Richard Bach

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Diz-se que quem cala, consente. A gadanha havia calado, portanto tinha consentido. Envolvida no seu lençol, com o capuz atirado para trás a fim de desafogar a visão, a morte sentou-se a trabalhar. Escreveu, escreveu, passaram as horas e ela a escrever, e eram as cartas, e eram os sobrescritos, e era dobrá-las, e era fechá-los, perguntar-se-á como o conseguia se não tem língua nem de onde lhe venha a saliva, isso, meus caros senhores, foi nos felizes tempos do artesanato, quando ainda vivíamos nas cavernas de uma modernidade que mal começava a despontar, agora os sobrescritos são dos chamados autocolantes, retira-se-lhes a tirinha de papel, e já está, dos múltiplos empregos que a língua tinha, pode dizer-se que este passou à história. A morte só não chegou ao fim com o pulso aberto depois de tão grande esforço porque, em verdade, aberto já ela o tem desde sempre. São modos de falar que se nos pegam à linguagem, continuamos a usá-los mesmo depois de se terem desviado há muito do sentido original, e não nos damos conta de que, por exemplo, no caso desta nossa morte que por aqui tem andado em figura de esqueleto, o pulso já lhe veio aberto de nascença, basta ver a radiografia. in As Intermitências da Morte de José Saramago.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

É meu e vosso este fado
Destino que nos amarra
Por mais que seja negado
Às cordas de uma guitarra
Sempre que se ouve o gemido
De uma guitarra a cantar
Fica-se logo perdido
Com vontade de chorar
Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que recebi
E pareceria ternura
Se eu me deixasse embalar
Era maior a amargura
Menos triste o meu cantar
Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que recebi


Ó Gente Da Minha Terra, Mariza

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. in As intermitências da morte de José Saramago.

Que saudades que eu já tinha de saramago. Agora as noites, mesmo longe, começam - adormeço - com a harmonia destas palavras.

sábado, 18 de agosto de 2007

Todo o Mal Provém não da Privação mas do Supérfluo

Ser feliz é, afinal, não esperar muito da felicidade, ser feliz é ser simples, desambicioso, é saber dosear as aspirações até àquela medida que põe o que se deseja ao nosso alcance. Pegando de novo em Tolstoi, que vem sendo em mim um padrão tutelar, lembremos de novo um dos seus heróis, o príncipe Pedro Bezoukhov (do romance 'Guerra e Paz'). As circunstâncias fizeram-no conviver no cativeiro com um símbolo da sabedoria popular, um tal Karataiev. Pois esse companheirismo desinteressado e genuíno, esse encontro com a vida crua mas desmistificadora, não só modificaram o príncipe Pedro como lhe revelaram o que ele precisava de saber para atingir o que nós, pobres humanos, debalde perseguimos: a coerência, a pacificação interior, que são correctivos da desventura.
Tolstoi salienta-nos que Pedro, após essa vivência, apreendera, não pela razão mas por todo o seu ser, que o homem nasceu para a felicidade e que todo o mal provém não da privação mas do supérfluo, e que, enfim, não há grandeza onde não haja verdade e desapego pelo efémero. Isto, aliás, nos é repetido por outra figura de Tolstoi, a princesa Maria, ao acautelar-nos com esta síntese desoladora: «Todos lutam, sofrem e se angustiam, todos corrompem a alma para atingir bens fugazes».
Fernando Namora, in 'Sentados na Relva'

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

A nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a aceitá-la tragicamente. O cataclismo deu-se, estamos entre as ruínas, desatamos a construir novos pequenos habitat, a alimentar novas esperançazinhas. É uma tarefa difícil, já não há nenhuma esperança suave em direcção ao futuro: rodeamos os obstáculos, ou passamos por cima deles. seja qual for o número de réus que desabem, temos de viver.Esta era, mais ou menos, a posição de Constance Chateterley. A guerra tinha sido como um tecto que lhe caísse em cima, e ela compreendera que seria necessário viver e aprender. in O Amante de Lady Chatterley de D.H. Lawrence.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Que dia de M.... - mau, a chover no meu país e eu aqui, longe de casa e da chuva que nela cai.


Mas as convulsões não serão porventura as mesmas, quer o sangue se esgote gota a gota, quer a inteligência se apague pensamento a pensamento. in O Último Dia de um Condenado de Vitos Hugo.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Livros sempre Presentes

Não viajo sem livros, nem na paz, nem na guerra... pois não se pode dizer o quanto eu me repouso e demoro nessa consideração de que eles estão ao meu lado para me darem prazer quando preciso e em reconhecer quanta ajuda eles me trazem à vida. É a melhor provisão que tenho encontrado para esta viagem humana e sinto uma pena extrema das pessoas inteligentes que deles se privam. Michel de Montaigne, in 'Dos Três Comércios'

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

As Qualidades dos Outros

Devido ao homem ter tendência para ser parcial para com aqueles a quem ama, injusto para com aqueles a quem odeia, servil para com os seus superiores, arrogante para com os seus inferiores, cruel ou indulgente para com os que estão na miséria ou na desgraça, é que se torna tão difícil encontrar alguém capaz de exercer um julgamento perfeito sobre as qualidades dos outros.
Confúcio, in 'A Sabedoria de Confúcio'

domingo, 12 de agosto de 2007

Memorial Do Convento

Um pouco retirado, o velho João Francisco entrança uma soga de couro, ouve falar mas dá pouca atenção ao que estão dizendo, já sabe que o filho partirá uma destas semanas e quer-lhe mal por isso, ir-se outra vez embora, assim, depois de andar aqueles anos na guerra, Bem feito que tornasse sem a mão direita, é tal o amor que chegam a pensar-se coisas destas. Blimunda le­vantou-se, atravessou o quintal e saiu para o campo, debaixo das oliveiras que subiam pela encosta até aos marcos da obra, ia enterrando as tamancas grossas no alqueive que a chuva amaciara, se fosse descalça e pisasse pedras agudas, não as sentiria, como seria possível doer-lhe esse pouco, se toda ela está cheia do horror de ter ousado o que esta manhã ousou, aproximar-se da mesa da comunhão em jejum, fingiu comer o seu pão ainda deitada, como de costume e necessidade, mas não o comeu, depois andou sempre de olhos baixos, fingindo compungimento e devoção em casa, e assim"' entrou na igreja, esteve no ofício como se a prostrasse a presença de Deus, ouviu o sermão sem levantar a cabeça, esmagada, ao parecer, por todas as ameaças de inferno que caíam do púlpito, e enfim foi receber a sagrada partícula, e viu. Duran­te todos estes anos, desde que se revelara o dom que possuía, sempre comungara em pecado, com alimento no estômago, e hoje decidira, sem nada dizer a Baltasar, que iria em jejum, não para receber a Deus, mas para o ver, se ele lá estava. Sentou-se na raiz levantada duma oliveira, via-se dali o mar confundido com o horizonte, decerto estaria chovendo com força sobre as águas, então encheram-se de lágrimas os olhos de Blimunda, um grande soluço lhe sacudiu os ombros, e Baltasar tocou-lhe na cabeça, aproximara-se e ela não o ouvira, Que foi que viste na hóstia, afinal não o iludira a ele, como seria possível se dormem juntos e todas as noites se procuram e encontram, quer dizer, não serão todas, é certo que há seis anos que vivem como marido e mulher, Vi uma nuvem fechada, respondeu ela. Baltasar sentou-se no chão não chegara ali a relha do arado, havia ervas secas, agora húmidas da chuva, mas esta gente popular não é mimosa, senta-se ou deita-se onde calha, melhor se pode um homem pousar a cabeça no regaço da mulher, estou que foi esse o último gesto quando as águas do dilúvio já afogavam o mun­do. E Blimunda disse, Esperava ver Cristo crucificado, ou ressurrecto em glória, e vi uma nuvem fechada, Não penses mais no que viste, Penso, como não hei-de pensar, se o que está dentro da hóstia é o que está dentro do homem, que é a religião, afinal, falta-nos aqui o padre Bartolomeu Louren­ço, talvez ele soubesse explicar-nos este mistério, Talvez não soubesse, talvez nem tudo possa ser explicado, quem sabe, e, mal foram estas palavras ditas, pôs-se a chuva a cair com mais força, sinal de sim, sinal de não, o céu agora uma pega­da nuvem, mulher e homem debaixo duma árvore, nenhum filho nos braços, afinal não é certo que as situações se repi­tam, e os lugares são outros, e os tempos também, diferente a própria árvore, mas da chuva diremos que é o mesmo consolo da pele e da terra, vida que sendo excessiva mata, mas a isso nos habituámos desde o começo do mundo, sen­do o vento maneiro mói o cereal, mas se é ponteiro rasga as velas do moinho, Entre a vida e a morte, disse Blimun­da, há uma nuvem fechada. in Memorial do Convento de Saramago

sábado, 11 de agosto de 2007

As suas asas eram barras de chumbo despedaçado, mas o peso do fracasso era-lhe mais doloroso. in Fernão Capêlo Gaivota de Richard Bach

sexta-feira, 10 de agosto de 2007


As coisas vulgares que há na vida
Não deixam saudade
Só as lembranças que doem
Ou fazem sorrir
Há gente que fica na história
Da história da gente
E outras de quem nem o nome
Lembramos ouvir
São emoções que dão vida
À saudade que trago
Aquelas que tive contigo
E acabei por perder
Há dias que marcam a alma
E a vida da gente
E aquele em que tu me deixaste
Não posso esquecer
A chuva molhava-me o rosto
Gelado e cansado
As ruas que a cidade tinha
Já eu percorrera
Ai, meu choro de moça perdida
Gritava à cidade
Que o fogo do amor sob a chuva
À instantes morrera
A chuva ouviu e calou
Meu segredo à cidade e eis que ela bate no vidro
Trazendo a saudade


CHUVA, fado de Mariza

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Após umas duas semanas de adaptação a uma nova vida, que espero curta, a normalidade voltou. Para iniciar esta fase, que de distância é, resolvi ler um dos livros que trazia na minha algibeira, Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco, escrito em 1862. É o mais famoso romance do autor, um dos expoentes do romantismo em Portugal, que se assume como uma espécie de "Romeu e Julieta" português.

Não conhecia e fiquei impressionado pela positiva. Aqui deixo para os curiosos um breve resumo da Obra, em que o Narrador se apresenta na primeira pessoa, e apenas se identifica no final do livro como filho de Manuel Botelho, irmão de Simão:Simão Botelho e Teresa de Albuquerque pertencem a famílias distintas, que se odeiam – qual Romeu e Julieta. Moradores de casas vizinhas, em Viseu, acabam por se apaixonar e manter um namoro silencioso através das janelas próximas. Ambas as famílias, desconfiadas, fazem de tudo para combater a união amorosa. Tadeu de Albuquerque (o pai de Teresa), após recorrentes tentativas de casar sua filha com um primo acaba por interná-la em um convento. Após luta travada com os criados do primo de Teresa, Simão Botelho permanece na casa de um ferreiro devedor de favores ao seu pai. A filha do ferreiro, Mariana, acaba também por se apaixonar por Simão, constituindo um triângulo amoroso. Teresa e Simão mantêm contacto por cartas. Este, numa tentativa de resgatar Teresa do convento, acaba por atirar no primo de Teresa, Baltasar, e é condenado ao degredo na Índia. Ao embarcar, vê Teresa, que morre logo em seguida. Nove dias depois, doente, Simão acaba por morrer também, e no momento em que vão lançar o corpo ao mar, morre Mariana, filha do ferreiro.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Há dias em que a voz me embala a alma, porque a alma está triste. Outros, que a alma me embala a voz, porque a voz está triste. Acontece por vezes que sinto tantas saudades de casa, dos que me são queridos, de falar português e de sentir que estou cá, que é a voz que me vai falar à alma. Porque ela está triste e magoada. A voz também tem alma e energia própria e por isso também sofre. Esta tristeza tem a ver com o facto de cantar muitas vezes para públicos que me vão ouvir pela primeira vez. Sinto um medo enorme. O que é que me vai acontecer? É nestes dias que a alma tem mesmo de me embalar a voz. Mariza, in Jornal de Leiria de 23 de Agosto de 2006
- Estorvar-me, tu? Oh, Goldmundo, ninguém mais do que tu me ajudou. Trouxeste-me dificuldades, mas eu não sou inimigo de dificuldades. Aprendi com elas e venci-as, em parte.


Até lá, porém, mestre, não quero continuar no ofício a polir figuras, a esculpir púlpitos, a passar a vida encerrado na oficina, a ganhar dinheiro e a tornar-me igual a todos os artífices; não isso não. Quero viver e correr mundo, sentir o Verão e o Inverno, provar a beleza e terror da vida. Quero sofrer fome e sede, quero esquecer e libertar-me de tudo o que vivi e aprendi convosco. Gostaria de fazer, mais tarde, algo tão belo e profundamente comovente como a vossa madona, mestre – mas não queria tornar-me igual a vós nem viver como vós viveis.
in Narciso e Goldmundo de Herman Hesse.

sábado, 4 de agosto de 2007

É certo que tenho querido imprimir em alguns de meus livros o cunho da utilidade com o valor da linguagem sã e ajeitada à expressão de ideias, que pareciam estranhas, como de feito eram, e não se nos deparam nos escritos dos Sousas, Lucenas e Bernardes. Em verdade, foi isto mirar muito longe com vista muito curta; assim mesmo, fiz o que pude; e neste livro direi que fiz menos do que podia. Nos quinze atormentados dias em que o escrevi faleceu-me o vagar e contenção que requer o acepilhar e brunir períodos. O que eu queria era afogar as horas, e afogar talvez a necessidade de vender o meu tempo, as minhas meditações silenciosas, e o direito de me espreguiçar como toda a gente, e o prazer ainda de ser tão lustroso na linguagem, quanto, em diversas circunstâncias, podia ser. in Prefácio da 2ª Edição de Amor de Perdição de Camilo Castelo-Branco.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Assim Foram morrendo os dias e com os dias os anos, mas algo parecido com a felicidade ocorreu uma manhã. Choveu, com poderosa lentidão.

(…) Entrei para o Partido.
Pouco direi de meus anos de aprendizagem. Foram mais duros para mim que para muitos outros, já que, apesar de não carecer de valor, me faltava vocação para violência. Compreendi, entretanto que estávamos à beira de um tempo novo e que esse tempo, comparável às épocas iniciais do islamismo e do cristianismo, exigia homens novos. Individualmente, os meus camaradas eram-me odiosos; em vão procurei raciocinar que, para o alto fim que nos congregava, não éramos indivíduos.
in o Aleph de Jorge Luis Borges.